Ana Paula da Silva Correia e José Rodrigues Ribeiro (Esposende)


Uma avaliação de desempenho muito pior que a anterior

O anterior modelo de avaliação expunha com excessiva clareza os seus objectivos – impedir a maioria dos professores de progredir na carreira e moldá-los para a submissão aos políticos locais, a quem as escolas vão ser entregues. Mais, baseava-se numa rígida e artificial divisão dos professores da cada escola entre titulares e não titulares, de longe a categoria mais numerosa. Assim, atraiu rapidamente a justa contestação dos professores e teve os seus dias contados.

O modelo actual veio com pezinhos de lã. Não houve crispação entre Ministério e sindicatos – as negociações foram até bastante pacíficas e culminaram num acordo. A tutela aprendeu com os erros cometidos e, à estratégia de afrontamento público seguida pela anterior equipa, sucedeu uma postura discreta e dialogante, quase poderíamos dizer de sedução dos professores. Não houve também concurso público nacional (como o de titulares, em 2007) para escolher quem vai avaliar (a opção pela inócua designação de relatores foi também tudo menos inocente) e quem vai ser avaliado – a selecção teve lugar, recatadamente e sem fazer ondas, no seio de cada escola. Houve ainda o cuidado de tornar facultativas para a maioria (por enquanto…) algumas das obrigações mais contestadas: aulas assistidas e objectivos individuais. E, não menos importante, instalou-se o tabu em torno do tema, quase ausente dos discursos dos responsáveis políticos e sindicais, mas também da imprensa, dos blogues … e das salas dos professores. Ninguém fala da avaliação do desempenho!

Contudo, o modelo de 2010 persegue exactamente os mesmos objectivos para os quais foi criado o tão contestado modelo de 2007. Pior, é-lhe superior nas consequências perversas e ruinosas para a qualidade do ensino e para a dignidade dos profissionais da educação que a sua implementação irá trazer. O bonito papel de embrulho não consegue esconder que as suas premissas são ainda mais insustentáveis do que as da versão produzida pela equipa de Maria de Lourdes Rodrigues. Vejamos porquê:

  • 1. Avaliadores e avaliados são concorrentes na mesma carreira profissional, o que fere inapelavelmente as garantias de imparcialidade.

As perspectivas de progressão na carreira de cada professor dependem, não apenas da sua própria classificação, como também da que os outros professores da mesma escola tiverem. Ora, avaliados e avaliadores pertencem à mesma escola e são muitas vezes concorrentes aos mesmos escalões da carreira, o que (por si só) constitui um forte motivo de impedimento.

E, mesmo quando pertencem a escalões diferentes, é óbvio que o avaliador tem interesse directo nas classificações atribuídas ao seu avaliado: se estiver posicionado em escalão superior, só terá a perder com a subida de escalão daquele, pois tornar-se-á concorrente directo numa futura transição de carreira, aumentando ainda as hipóteses de o poder vir a substituir como avaliador; se, o que a lei permite em determinados casos, o avaliador pertencer a um escalão de carreira inferior ao do seu avaliado, é-lhe oferecida a possibilidade de, através da classificação que atribuir, o fazer marcar passo na carreira e poder alcançá-lo, conferindo assim solidez ao seu recém-adquirido estatuto de avaliador.

Independentemente dos incontornáveis impedimentos legais, dificilmente se poderia conceber um esquema mais maquiavélico de “avaliação entre pares”, que só poderá ter como resultado a degradação do clima de trabalho nas escolas. Quanto ao princípio da imparcialidade, foi feito em pedaços.

  • 2. A divisão entre professores e professores titulares não acabou. Foi substituída pela divisão entre avaliadores e avaliados.

Embora o Estatuto de 2010 tivesse retomado (em teoria) a carreira única, o novo modelo de avaliação reintroduziu (na prática) a divisão dos professores em duas categorias. Com a agravante de a actual divisão conseguir ser ainda mais artificial e arbitrária que a anterior. Mais artificial, porque relatores e avaliados, como pertencem à mesma carreira profissional e desempenham a mesma (e nobre) função de ensinar, não faz qualquer sentido a separação das suas competências em matéria de avaliação, isto já sem falar nos impedimentos daí decorrentes, a que atrás se aludiu. Mais arbitrária, porque se o concurso dos titulares foi feito em obediência a regras que – embora muito discutíveis e nem sempre respeitadas – apresentavam ainda assim alguma objectividade e universalidade, na selecção dos relatores prevalecem a ambiguidade e a falta de transparência, como adiante se verá.

Acresce que, para consolidar o estatuto (e conquistar a adesão) dos novos “professores de primeira”, foram-lhes prometidas para breve acções de formação a eles em exclusivo destinadas. Numa época de contenção, em que não há dinheiro para os salários dos professores …

  • 3. Na escolha dos avaliadores não preside o mérito, mas apenas a vontade dos directores e dos coordenadores de departamento.

A pirâmide dos avaliadores é encimada pelo director da Escola que nomeia e avalia os coordenadores de departamento. Estes escolhem e avaliam os relatores que vão, por sua vez, avaliar o restante corpo docente.

A legislação estabelece que o relator deve (mas o sempre que possível dá pano para mangas) pertencer ao mesmo grupo disciplinar que os seus avaliados e ter maior ou igual posicionamento na carreira e grau académico do que estes, mencionando ainda uma hipotética “formação especializada em avaliação do desempenho” que não se sabe bem o que significa. É porém completamente omissa quando ao modo como estes diferentes critérios são ponderados e compatibilizados.

Mas a ambiguidade não fica por aqui. A lei diz também que, no caso de o docente com maior posicionamento na carreira não ser escolhido como relator (é curioso que esta eventualidade tenha merecido destaque), o coordenador pode escolher como seu relator um docente com uma posição na carreira que lhe seja inferior. Por outras palavras, o posicionamento na carreira poderá não valer rigorosamente nada.

O mesmo se passa com o exercício de outras funções. Como conceber que um coordenador de grupo disciplinar, com competências no âmbito da orientação cientifica e pedagógica de todos os docentes do seu grupo, tenha as suas aulas assistidas e seja orientado por um desses docentes, no caso deste ser nomeado relator?

E outras situações não menos absurdas são igualmente possíveis e até comuns. Apenas a talhe de foice, refira-se que (não sabemos se por iniciativa das escolas ou da tutela, mas sem dúvida para criar uma sólida base de apoio ao modelo) parece existir tendência para haver o maior número possível de relatores – chegam a existir três relatores por grupo disciplinar, sendo os avaliados repartidos entre eles sabe-se lá com que critério. Dividir para reinar?

Resta acrescentar que, em virtude da ausência de critérios objectivos de selecção e atendendo ao facto do coordenador não apenas ter a faculdade de o escolher, mas também de o classificar, os relatores têm tudo a ganhar em atribuir as classificações dos seus avaliados em sintonia com a opinião dos coordenadores e, em última análise, do próprio director, dado que este é quem nomeia e avalia os coordenadores e preside ao júri que aprecia as propostas de avaliação dos relatores.

  • 4. Não existe objectividade nos instrumentos e métodos de avaliação a utilizar.

Outro aspecto não menos gravoso, por acentuar o impacto da falta de imparcialidade no processo de avaliação, é a ausência completa de padrões e metas de avaliação minimamente objectivos, bem como de instrumentos de avaliação fiáveis e precisos.

Nas fichas de avaliação do modelo antigo, aspectos como a assiduidade às aulas e ao restante serviço docente ou as classificações obtidas em acções de formação eram traduzidos de forma objectiva em classificações a atribuir aos respectivos parâmetros.

Agora, acabam de aparecer uns “padrões de desempenho docente”, que supostamente irão servir para a definição dos instrumentos de avaliação a utilizar em cada escola. Embora repletos de vacuidades, expõem ad nauseam um certo número de orientações que traduzem claramente a opção ideológica de quem os elaborou, bem como às fichas de avaliação global.

Basta atentar nalguns dos indicadores e descritores escolhidos para a avaliação do trabalho dos professores: reconhecimento da relevância do trabalho colaborativo na prática profissional, reconhecimento da importância da dimensão comunitária na acção educativa, planificação com os pares, participação em projectos de trabalho colaborativo na escola, envolvimento em projectos que visam o desenvolvimento para a comunidade, etc., etc. Até a formação profissional docente é subordinada à partilha de conhecimentos com os pares e ao trabalho dito colaborativo. O irónico nisto tudo é que vai ser o próprio clima de competição desenfreada criado por este modelo a liquidar quaisquer veleidades de partilha de conhecimentos ou de trabalho colaborativo entre pares que pudessem subsistir.

A subvalorização da competência científica e pedagógica do professor e do seu trabalho com os alunos torna-se também evidente quando dimensões como a “vertente profissional, social e ética” ou a “participação na escola e relação com a comunidade educativa” têm na classificação de cada professor um peso praticamente equivalente (em certos casos, até pode ser superior) à dimensão “desenvolvimento do ensino e da aprendizagem”.

Vem a talhe de foice referir que a manutenção do carácter rigorosamente confidencial das classificações finais de cada professor revela a convicção da tutela dos efeitos arrasadores que poderiam advir do conhecimento de quem foi contemplado com os ambicionados Muito Bons e Excelentes. Com estes padrões do desempenho docente, até nem admira …

  • 5. As garantias de defesa contra classificações injustas são, se possível, ainda menores.

Foi mantida a farsa da entrevista individual entre avaliado e relator, que apenas serve dois propósitos: limitar as possibilidades de defesa do avaliado, já que este, se tiver relutância em ficar frente a frente com o seu relator ou falhar a entrevista, não terá outro remédio senão aceitar a classificação que lhe foi atribuída; permitir ao relator fundamentar melhor (sem mudar a nota, bem entendido) a sua proposta, antecipando nela a resposta aos argumentos do avaliado, se este vier posteriormente a reclamar.

Quer tenha ou não havido antes entrevista individual, os relatores apresentam as propostas de classificação a um júri de avaliação, presidido pelo director e em cuja composição entram, além do relator em questão, três membros docentes do Conselho Pedagógico. É este júri que toma a decisão final.

Tendo em conta que os professores do Conselho Pedagógico são nomeados pelo director e que o próprio relator foi escolhido por um coordenador nomeado pelo director, é inquestionável que será este último (em boa verdade) a decidir qual a classificação que cada professor recebe. É caso para perguntar se não seria melhor que a entrevista individual fosse com o próprio director?

De qualquer modo, e ao contrário do que sucedia com o modelo de 2007, quando o avaliado recebe a ficha de avaliação global de desempenho, esta já não traduz apenas a opinião isolada do seu relator, mas transporta consigo toda uma chancela institucional.

Por outro lado, enquanto no anterior modelo, o avaliado inconformado com a classificação podia reclamar, sendo o avaliador obrigado a pedir um parecer vinculativo à comissão de coordenação de avaliação de desempenho, entidade que (em princípio) nada tinha a ver com a decisão, agora a apreciação da reclamação cabe unicamente aos mesmos que tomaram a decisão reclamada.

Mas ainda há mais … Se a classificação for mantida (e alguém duvida que o seja?), o avaliado tem ainda obviamente a possibilidade de recorrer. No modelo anterior, a apreciação do recurso cabia ao respectivo director regional de educação, hierarquicamente superior ao director da escola. Agora, aparece um júri de três membros, presidido por elemento designado pela direcção regional de educação (é evidente que esta pedirá ao director que sugira alguém) e dele fazendo parte o próprio relator (não é engano!). Como pode alguém decidir o recurso que recaiu sobre a sua própria decisão?

Talvez para disfarçar, é concedida ao recorrente a possibilidade (resta saber se o vai conseguir …) de indicar um outro professor, de uma escola do mesmo concelho ou de concelho limítrofe. Esta engenhosa disposição sugere também que possa não haver nenhum docente da própria escola que queira correr o risco de representar o recorrente.

Em todo o caso e para além do desenlace do recurso ser por demais evidente – até porque classificação, reclamação e recurso são decididos no interior do mesmo círculo de pessoas e provavelmente no mesmo lugar – mais uma vez é patente o desprezo de quem elaborou estas normas, pelas leis gerais que regulam os princípios da justiça, da transparência e da imparcialidade que devem presidir a todos os actos de um Estado de Direito.

Não cremos que esta enumeração dos aspectos mais sinistros do actual modelo tenha sido exaustiva. Esperamos contudo que possa ter servido para levar muitos professores a relançar a discussão. Se em 2008 a luta foi inevitável, mesmo para aqueles que inicialmente não se tinham apercebido das ameaças sobre a nossa dignidade profissional, sobejam agora razões para travar esta versão ainda mais perversa da avaliação do desempenho. Antes que se consolide. Antes que seja tarde demais …