Razões de uma grevista
Claro que vou fazer greve.
As razões são muitas e de ordem variada.
Até há pouco tempo eu dizia, para escândalo dos circunstantes, que estava de bem com a profissão e me considerava bem paga. Estou no topo da carreira, no 34º ano de serviço. Tinha 14 tempos de aulas - para mim eram mesmo aulas, não eram cargos e outras derivações - e levava bem mais de 10 horas a ver trabalhos e a preparar aulas e materiais. Mas aguentava isso bem e imaginava que daqui a três anos deixaria a escola contente comigo e contente por deixar espaço para outros mais novos.
De repente o céu começou a cair na minha cabeça - forçadamente rejuvenesci e só daqui a seis, sete, ou oito ou sabe-se lá quantos anos poderei reformar-me. Estou este ano na escola 34 tempos, isto é, mais de 29 horas por semana. Com as bem mais de 10 horas de que preciso para trabalhar em casa, no final da carreira tenho um horário de trabalho de mais de 40 horas. Bonito. Agora até reivindicações salariais já tenho. Assim estou mesmo muito mal paga.
Estou de gatas. Passar onze horas numa escola, dar algumas das aulas em salas com janelas entaipadas por madeira, bandeiras que não se movem para que possa correr um pouco de ar, tapamento de lusalite no pavilhão, 25 pessoas lutando por respirar e o suor escorrendo. Já adoeci, já ando movida a penicilina. Não, ainda não faltei. Falto pouco. No ano passado faltei no dia 2 de Janeiro - para além de o meu sogro fazer nesse dia 90 anos dignos de todas as celebrações, recuso-me a ir trabalhar nesse dia - nunca fui, não ia começar agora que estou velha. E faltei no dia 24 de Abril para fazer uma ponte para tão longe quanto pude.
Claro que forçosamente vou trabalhar mal. Depois de 9, 10, 11 horas na escola é impossível chegar a casa e pegar com êxito em livros e papeis. Troco com todos esses senhores que nos gabinetes ministeriais, jornais, televisões se têm entretido a dissertar sobre a profissão, troco durante uma semana. Se eles aguentarem uma semana. Fica o desafio feito. Senhor Vasco, senhor Marcelo, senhora ministra, senhor secretário de estado, senhor primeiro ministro, à vossa disposição. Deste rol, mesmo para os mais novos a coisa não será fácil. Estar lá às 8.15h, (caminho em obras, betoneiras prantando-se à frente da fila - motorista não vale e de transporte público não é fácil), levar marmita com o almoço (não vale passar à frente dos alunos na fila da cantina e 45 minutos não dão para fila e almoço). Não, também não se pode vir cá fora comer. Ali mesmo ao pé da escola o local mais aprazível é um cemitério mas, como é subúrbio, aquela moderna empresa mortuária ainda não chegou lá e por isso nem sopas, nem chás, nem bolachinhas... Há uma moradia, a cuja belíssima construção assisti, que alberga senhoras dedicadas apenas ao seu senhor. Não, não é uma casa de passe, é de freiras e não serve, ao que julgo, nenhum tipo de refeições. Tudo o mais fica fora de mão.
A escola não ficou melhor - os oportunistas continuam nas suas oportunidades, as corrupçõezinhas mantêm-se, os pequenos (ou grandes) crimes contra os alunos continuam a cometer-se, os professores que gostavam do que faziam e tentavam desempenhar bem a função vêem-se agora às aranhas, embrulhados numa teia de desgaste.
Ao contrário do que se diz por aí, o simplex não chegou à minha escola.
As matrículas foram como sempre um caro exercício de burocracia.
Os horários dos alunos são absurdos. Quatro tempos de aulas matinais, três tempos no intervalo de almoço, para a maioria dos alunos mesmo só para almoçar, e três ou quatro tempos de aulas à tarde. Alguns, poucos, terão actividades - aulas de recuperação, participações num ou outro clube no tal intervalo de almoço. Nunca se faz um balanço sério destas ocupações mas ficamos todos num faz de conta que parece agradar à senhora ministra.
Para ter as suas aulas as turmas correm por onze salas diferentes durante a semana. Lá andam saltitando de sala em sala com a carga às costas. Estão a ver aqueles blocos de noventa minutos distribuídos por duas disciplinas cada uma em sala de pavilhão diferente sem intervalo? Estão a ver quanto tempo forçosamente se perde da segunda aula, por muito que se apressem professores e alunos de um lado para o outro. Como soa ridícula aquela aparente exigência de cumprimento de tempos e marcação de faltas que anda em discussão no estatuto.
Todas aquelas coisas que se espera que vão melhorando, pioram.
Este mês, a senha do passe para os alunos que moram longe da escola só foi distribuída na segunda semana. Isto para muitas daquelas famílias é pesadelo. Aqueles dias todos a pagar senhas quase cobriram o preço do passe. Alguns alunos, cujas famílias não conseguem mesmo dispor desse dinheiro, ou faltam à escola, ou cumprem a pé, correndo alguns riscos, grandes distâncias ou enfiam-se sem bilhete nos autocarros, forçados que são a aprender estes pequenos desvios utilitários. Este enguiço com as senhas do passe significa para alguns o primeiro contacto com fiscais e polícia.
Mas há a "escola segura" que promove um espectáculo de apresentação das múltiplas habilidades das polícias, espectáculo abrilhantado por aquela fabulosa banda dos afamados morangos com açucar cujo nome não sei bem mas anda próximo de sobremesa. E para aqui os alunos só pagarão a deslocação - 2.70 ou 2.90 euros. Se me convocarem para acompanhar os jovens, lá terei de faltar porque já não tenho saúde, fôlego, paciência... Talvez marquem nova greve para esse dia!
Só esta ideia me cansou. Voltarei.
As razões são muitas e de ordem variada.
Até há pouco tempo eu dizia, para escândalo dos circunstantes, que estava de bem com a profissão e me considerava bem paga. Estou no topo da carreira, no 34º ano de serviço. Tinha 14 tempos de aulas - para mim eram mesmo aulas, não eram cargos e outras derivações - e levava bem mais de 10 horas a ver trabalhos e a preparar aulas e materiais. Mas aguentava isso bem e imaginava que daqui a três anos deixaria a escola contente comigo e contente por deixar espaço para outros mais novos.
De repente o céu começou a cair na minha cabeça - forçadamente rejuvenesci e só daqui a seis, sete, ou oito ou sabe-se lá quantos anos poderei reformar-me. Estou este ano na escola 34 tempos, isto é, mais de 29 horas por semana. Com as bem mais de 10 horas de que preciso para trabalhar em casa, no final da carreira tenho um horário de trabalho de mais de 40 horas. Bonito. Agora até reivindicações salariais já tenho. Assim estou mesmo muito mal paga.
Estou de gatas. Passar onze horas numa escola, dar algumas das aulas em salas com janelas entaipadas por madeira, bandeiras que não se movem para que possa correr um pouco de ar, tapamento de lusalite no pavilhão, 25 pessoas lutando por respirar e o suor escorrendo. Já adoeci, já ando movida a penicilina. Não, ainda não faltei. Falto pouco. No ano passado faltei no dia 2 de Janeiro - para além de o meu sogro fazer nesse dia 90 anos dignos de todas as celebrações, recuso-me a ir trabalhar nesse dia - nunca fui, não ia começar agora que estou velha. E faltei no dia 24 de Abril para fazer uma ponte para tão longe quanto pude.
Claro que forçosamente vou trabalhar mal. Depois de 9, 10, 11 horas na escola é impossível chegar a casa e pegar com êxito em livros e papeis. Troco com todos esses senhores que nos gabinetes ministeriais, jornais, televisões se têm entretido a dissertar sobre a profissão, troco durante uma semana. Se eles aguentarem uma semana. Fica o desafio feito. Senhor Vasco, senhor Marcelo, senhora ministra, senhor secretário de estado, senhor primeiro ministro, à vossa disposição. Deste rol, mesmo para os mais novos a coisa não será fácil. Estar lá às 8.15h, (caminho em obras, betoneiras prantando-se à frente da fila - motorista não vale e de transporte público não é fácil), levar marmita com o almoço (não vale passar à frente dos alunos na fila da cantina e 45 minutos não dão para fila e almoço). Não, também não se pode vir cá fora comer. Ali mesmo ao pé da escola o local mais aprazível é um cemitério mas, como é subúrbio, aquela moderna empresa mortuária ainda não chegou lá e por isso nem sopas, nem chás, nem bolachinhas... Há uma moradia, a cuja belíssima construção assisti, que alberga senhoras dedicadas apenas ao seu senhor. Não, não é uma casa de passe, é de freiras e não serve, ao que julgo, nenhum tipo de refeições. Tudo o mais fica fora de mão.
A escola não ficou melhor - os oportunistas continuam nas suas oportunidades, as corrupçõezinhas mantêm-se, os pequenos (ou grandes) crimes contra os alunos continuam a cometer-se, os professores que gostavam do que faziam e tentavam desempenhar bem a função vêem-se agora às aranhas, embrulhados numa teia de desgaste.
Ao contrário do que se diz por aí, o simplex não chegou à minha escola.
As matrículas foram como sempre um caro exercício de burocracia.
Os horários dos alunos são absurdos. Quatro tempos de aulas matinais, três tempos no intervalo de almoço, para a maioria dos alunos mesmo só para almoçar, e três ou quatro tempos de aulas à tarde. Alguns, poucos, terão actividades - aulas de recuperação, participações num ou outro clube no tal intervalo de almoço. Nunca se faz um balanço sério destas ocupações mas ficamos todos num faz de conta que parece agradar à senhora ministra.
Para ter as suas aulas as turmas correm por onze salas diferentes durante a semana. Lá andam saltitando de sala em sala com a carga às costas. Estão a ver aqueles blocos de noventa minutos distribuídos por duas disciplinas cada uma em sala de pavilhão diferente sem intervalo? Estão a ver quanto tempo forçosamente se perde da segunda aula, por muito que se apressem professores e alunos de um lado para o outro. Como soa ridícula aquela aparente exigência de cumprimento de tempos e marcação de faltas que anda em discussão no estatuto.
Todas aquelas coisas que se espera que vão melhorando, pioram.
Este mês, a senha do passe para os alunos que moram longe da escola só foi distribuída na segunda semana. Isto para muitas daquelas famílias é pesadelo. Aqueles dias todos a pagar senhas quase cobriram o preço do passe. Alguns alunos, cujas famílias não conseguem mesmo dispor desse dinheiro, ou faltam à escola, ou cumprem a pé, correndo alguns riscos, grandes distâncias ou enfiam-se sem bilhete nos autocarros, forçados que são a aprender estes pequenos desvios utilitários. Este enguiço com as senhas do passe significa para alguns o primeiro contacto com fiscais e polícia.
Mas há a "escola segura" que promove um espectáculo de apresentação das múltiplas habilidades das polícias, espectáculo abrilhantado por aquela fabulosa banda dos afamados morangos com açucar cujo nome não sei bem mas anda próximo de sobremesa. E para aqui os alunos só pagarão a deslocação - 2.70 ou 2.90 euros. Se me convocarem para acompanhar os jovens, lá terei de faltar porque já não tenho saúde, fôlego, paciência... Talvez marquem nova greve para esse dia!
Só esta ideia me cansou. Voltarei.
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