Texto furtado da educação do meu umbigo


A ser verdade que na próxima 2ª-feira (24/11) realiza-se um debate sobre a avaliação dos professores, importa referir que esse é apenas um dos motivos da revolta que surgiu; como disse John Steinbeck, “a injustiça é a mãe de todas as revoltas”, pelo que o verdadeiro problema começou com o estatuto da carreira docente (ECD) e a divisão artificial da carreira em duas categorias: titular e não titular (suplente). Também era pertinente ouvir um professor avaliado (não titular), que efectivamente demonstrasse os múltiplos aspectos perversos e subjectivos do ECD e do qual se construiu este modelo de avaliação. Permita-me enumerar alguns desses aspectos:

- Aumento da idade da aposentação (que no ensino não superior com a tipologia de alunos que existe é desumano, já não falando no aspecto de cidadania);

- Congelamento ad eternum da carreira (com o estabelecimento de quotas para professor titular, 70% dos professores terminarão a sua carreira no 5º escalão, independentemente das classificações de avaliação que tiverem ao longo da carreira, mesmo que Excelentes. As consequências da continuação durante décadas no mesmo escalão no cálculo da pensão de reforma serão catastróficas…)

- Perda de tempo de serviço (muitos professores vão permanecer, em média, 8 naos no mesmo escalão. O cálculo baseia-se no tempo de serviço congelado e na alteração da estrutura da carreira docente que aumentou o nº de anos em cada escalão)

- A citada divisão em duas categorias (o professor titular tem a mesma competência funcional que o professor suplente: tem turmas, muitas vezes do mesmo nível de ensino do avaliado, executa as mesmas tarefas lectivas e não lectivas (exceptuando avaliar outros professores), trabalham nos mesmos órgãos escolares. A analogia do general e soldados é uma falácia; só pode haver um general porque executa funções diferentes dos soldados…

Sendo o conteúdo funcional o mesmo, a legitimidade dificilmente será reconhecida pelo avaliado; esta legitimidade moral está posta em causa desde o início porque os actuais titulares nunca se sujeitaram a um modelo de avaliação idêntico para atingir o lugar que ocupam, tendo lá chegado por via administrativa. Além disso, o concurso de titulares apenas considerou os últimos 7 anos de carreira, castrando toda uma vida de trabalho…

Curiosamente, um avaliado que preencha alguns requisitos, pode candidatar-se ao cargo de Director ou ser nomeado Subdirector, mas não pode ser titular por imposição de quotas; ou seja, como o Director é avaliador do titular, então existe a hipótese de um avaliado poder ser avaliador do seu avaliador…)

- Regime de faltas (penalização dos casos de doença, maternidade, paternidade, etc., com a inclusão de um indicador de avaliação denominado A2)

- A assiduidade como o indicador principal da avaliação de desempenho (para se obter o Excelente é necessário 100% de cumprimento do serviço lectivo e para se obter o Bom é necessário 95%. Isto significa que um professor com 94,5% de assiduidade, mesmo que tenha Muito Bom ou Excelente nos trinta e tal indicadores de avaliação a que foi sujeito, terá automaticamente Regular só por causa da assiduidade…)

- Resultados escolares dos alunos (a perigosa perversão resultante deste parâmetro é evidente: a autoridade do professor fica debilitada pelo aluno que tenha consciência que um seu mau resultado afecta pessoalmente o professor; a compreensível inflação das classificações com o estabelecimento de metas de percentagens de positivas; o trabalho individual do aluno bem como o contexto sócio-económico, influenciam os resultados; segundo um estudo da Universidade de Bristol, a qualidade do professor só afecta em 30% a qualidade do aluno; a qualidade da avaliação externa (vulgo, exames) não é resultante do desempenho individual do docente, bem como os respectivos critérios de correcção;)

- Abandono escolar (disfuncionalidade familiar e individual, mau contexto sócio-económico, não é resultante do desempenho individual do docente)

- Relação com a comunidade (nem sempre existe contextualização curricular para estabelecer relações com a comunidade não educativa)

- Objectivos individuais (como é possível existirem objectivos individuais num sistema que funciona maioritariamente com trabalho de equipa e com órgãos colectivos- conselho de turma, conselho pedagógico, área disciplinar, departamento curricular, etc.? Este modelo potencia a competição individualista criando uma entropia perigosa num sistema educativo construído para trabalhar num contexto colectivo…)

- Subjectividade elevada dos indicadores de avaliação (a distinção entre as diferentes classificações é muito ténue; a diferença entre um Bom e Muito Bom ou entre este e Excelente, baseiam-se em minudências que dependem exclusivamente da arbitrariedade e discricionariedade do avaliador, existindo o perigo de instintos persecutórios, desavenças pessoais ou humores emotivos, influenciarem a classificação)

- Instrumentos de registo da avaliação com 33 indicadores ( 16 a cargo do avaliador e 17 a cargo do Director. Considerando que cada indicador de avaliação tem de possuir 5 descritores, as grelhas de avaliação apresentam um total de 165 descritores que podem ser utilizados…)

- Aumento do horário semanal de trabalho (de forma encapotada, o horário semanal aumentou porque muitas das actividades não lectivas são realizadas em horário pós-laboral. As substituições de docentes são actividades realizadas em contexto de sala de aula, com um plano, e portanto, são lectivas; por decreto, convenientemente retira-se o estatuto de lectiva para não se pagarem horas extraordinárias. Quando um docente substitui outro por ausência prolongada, fica em cada semana com mais turmas e portanto, com mais horas lectivas semanais sem qualquer retribuição).

- Avaliador ser opositor ao mesmo concurso que o seu avaliado e às quotas das classificações (no caso do projecto de considerar a avaliação de desempenho para efeitos de concurso nacional de professores, o avaliador que quiser concorrer terá isenção na avaliação dos seus avaliados que também concorrem sabendo que as classificações dão bónus na graduação? Com quotas para Excelente e Muito Bom a que também concorre, também terá isenção?)

- Número de aulas avaliadas (como é que observando 2/3 aulas, numa média de 150 aulas por ano em cada disciplina, determinam a qualidade do professor? Como aceitar a avaliação de alguém que sabemos que não é melhor do que nós na mesma função?)

- Carreira única e níveis de ensino diferentes (não existe distinção entre os diferentes níveis de ensino, de acordo com as suas especificidades. Leccionar ao 1º Ciclo/2º Ciclo não é igual a leccionar ao 3º ciclo ou Secundário. Tal como leccionar Matemática não é igual a leccionar Biologia ou Português ou Inglês ou Educação Física ou etc.).

- Gestão escolar (actualmente, os gestores das escolas são nomeados, enquanto antes eram eleitos mediante a apresentação de um programa eleitoral. A nomeação é feita por um orgão chamado Conselho Geral, onde o corpo docente está em minoria, sendo, em várias escolas, a maioria composta por políticos autárquicos (câmara e juntas de freguesia). Acho que não é preciso explanar mais…

Existiu um evidente retrocesso democrático, tornando a escola alvo de potenciais conflitos políticos e ser uma arena onde se podem dirimir problemas alheios à comunidade escolar…)

E muito haveria para discutir. Acrescente-se as dezenas de escolas que não possuem condições materiais dignas, a falta de condições físicas de trabalho para os professores, a sobrelotação das turmas e das escolas em algumas regiões, a falta de recursos humanos não docentes, a diminuição do investimento, e o caldo já está entornado…

O problema da educação, é que é usada como arma política e eleitoral, em vez de ser gerida por critérios técnicos. Conjuntamente com o futebol, também é um sector onde existem muitos professores de bancada sem possuírem a especialização ou as habilitações académicas para opinar fundamentadamente, e que com as suas opiniões levianas só desestabilizam um sistema complexo.

A escola é uma instituição onde é fundamental a existência de relações interpessoais saudáveis, desinteresseiras e harmoniosas, onde a afectividade tem de ser positiva, sob pena de todo o processo educativo estar comprometido, mas que este ECD não promove.

Enfim, mas quem sou eu, cidadão não mediático e profissional da educação, para que a minha opinião pragmática tenha alguma credibilidade?

Esperando que tenha lançado alguns verdadeiros esclarecimentos, e que os debates sejam prós e contras em vez de prós e prós, agradeço o esforço desenvolvido para dedicar alguma atenção a esta missiva.

Com os melhores cumprimentos,

Mário Silva