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M. Eugénia Prata Pinheiro

terça-feira, janeiro 08, 2008

Cemitérios e capelas mortuárias

Assim vamos - os professores vão fumar para o cemitério, as crianças vão para a capela mortuária cumprir as suas actividades de tempos livres. Tudo a cheirar a morto a bem da saúde e do erário.

Estas histórias tristes despertaram-me memórias de infância.

Fiz a escola primária no Porto, na Ordem da Trindade, uma daquelas ordens religiosas que, ocupando quarteirões da cidade, forneciam serviços diversificados aos espíritos e aos corpos - igreja, hospital, farmácia, escola, sopa dos pobres...

Da escola guardo espantosas recordações. Uma professora exigente distribuindo pancadaria de criar bicho com uma robusta palmatória. Um professor de canto coral que nos punha a cantar em latim para que, afinados, cantássemos nas missas de corpo presente dos Irmãos da Ordem que se finavam. Quando se tratava da morte de um Mesário, íamos mesmo ao cemitério acompanhar o funeral com o nosso Libera Me. Para a aula de canto levavam-se os ditados, com os erros destacados, presos com uma mola da roupa às costas. As manobras para diminuir o vexame levavam-nos a caminhar como sombras uns dos outros. A catequese decorria num corredor obscuro ao lado da igreja. A catequista era a grande amiga do senhor reitor e esforçava-se por me meter na cabeça que o bispo do Porto era Florentino de Andrade esforçando-me eu por que ela aprendesse que era António Ferreira Gomes, exilado pelo Salazar.

Acho que começaram aqui alguns dos meus combates. E alguns dos meus descréditos. Desacreditei da igreja. Desacreditei da escola - depois de quatro anos com aquela professora que muito me fez aprender, sendo a melhor aluna de entre os rapazes e raparigas que frequentavam a quarta classe, impediram-me o acesso aos exames porque tinha nove anos. A família fez diligências, o meu avô foi de avião (coisa cara e complicada na época) a Lisboa tentar convencer o ministro mas sem resultado. Repeti a quarta classe com a outra professora das raparigas que todos os dias fazia o favor de me perguntar se eu gostava mais dela ou da que me acompanhara nos quatro anos anteriores, ao que eu todos os dias respondia que gostava mais da outra, embora os voos da palmatória transtornassem com raiva aquele gosto. Percebi que os professores não são para "se gostar". No ano seguinte o ministro alterou a lei porque tinha uma sobrinha... Desacreditei daquele poder. A isto também ajudou a farsa eleitoral que envolveu a candidatura do Humberto Delgado. Fui ao seu comício na Avenida dos Aliados. A família dissera-me hoje não deves ir passear pela cidade, vens para casa direitinha logo no fim da escola que pode haver confusões na avenida. Sinal verde para a Avenida. Tinha oito anos e tinha de ver o mundo em volta.

Veio-me tudo isto à memória ao saber das crianças de Leiria enfiadas na capela mortuária para os tempos livres. Veda-se hoje às crianças o contacto com a morte mas dá-se-lhes depois o lugar do morto. Quando eu saía da escola e dava conta que estava um cadáver a ser velado na capela mortuária da Ordem, ia lá dar uma voltinha. Não seria mera curiosidade mórbida mas o modo mais rápido de saber da importância do "Irmão" para avaliar se no dia seguinte a aula seria substituída por missa e latinório, o que, devo dizer, proporcionava grande gozo. Estávamos todos juntos no côro da igreja, rapazes e raparigas, a assistir à encenação. E divertíamo-nos. Até deturpando o latim, fazendo traduções livres com sonoridade aproximada. Destas substituições gostávamos!

Não digo que rezasse para que morressem Irmãos e Mesários, não só porque nunca tive grande crença no poder da oração mas também porque ia sendo educada na defesa da vida. Hoje, em reunião de departamento, uma colega confessava que rezava para que os alunos difíceis faltassem à aula. Ao meu lado um colega sussurrou-me que em miúdo rezava para que faltassem os professores. Se fosse hoje abster-se-ia da oração porque na falta do professor apanharia com uma daquelas substituições que não têm graça (divina) nenhuma.

10 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Eu sei, por acaso, o que é andar numa escola de "freiras".
ODIEI.
Naquele sítio não se formavam homens e muleres preparados para a vida real, mas sim para uma vida de luxo onde não é preciso trabalhar para se ter aquilo que se quer.E isso É MENTIRA

7:43 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

*mulheres

7:44 da tarde  
Blogger anna said...

Eu andei num externato de freiras e adorei... a minha professora era uma mulher extraordinãria, muito à frente do seu tempo, a quem recordo muitas vezes.
Obrigada pelos conselhos contra o mau feitio do polvo!
Beijos.

8:01 da tarde  
Blogger Setora said...

Caros Nuno e Anna
Vê-se que não são do Porto. Estas escolas não tinham nada a ver com colégios de freiras. Eram na prática escolas públicas para onde iam os meninos que moravam na área.Pobres e menos pobres. Mesmo ao lado havia um aglomerado de barracas de madeira sobre estacaria que forneciam parte dos alunos. A ideia que tenho é que a minha primeira professora era ateia e não participava em nenhuma daquelas actividades religiosas. Julgo que eram pagas pelo estado. O professor de música e canto é que era pago pela Ordem tal como uma outra senhora que ensinava as meninas a coser, bordar...Eram os ATL da época. Já lá vai meio século.Claro que havia catequese. Era o costume e a igreja estava ali ao lado. E como a escola estava de algum modo integrada na Ordem lá íamos aos funerais - o "valor acrescentado" possível.

1:10 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Eu também andei na Escola da Trindade de que tenho muito boas recordações... Ia a pé de casa à Escola (ninguém me acompanhava... impensável nos dias de hoje). Era uma escola para pobres mas com as melhores professoras primárias do Porto. Felizmente que não fico traumatizado com uma reguada. Se calhar é preferivel ser o aluno bater no professor. Obrigado por me fazeres recordar velhos tempos.

3:49 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Olá, Luís
Claro que íamos sozinhos e a pé. E aprendíamos. Eu só apanhei uma vez porque quis experimentar a palmatória e enganei a professora dizendo-lhe que dera um número de erros superior ao permitido. Mas revolviam-se-me as entranhas com as tareias que a O., menina de uma "ilha", apanhava todos os dias. Olha que estas tareias fizeram muitos recusar a escola.
E, que diabo, ando há 35 anos nisto, com alunos muito variados e nunca passou pela cabeça de nenhum bater-me. Um ou outro lá atirou com a porta mas o assunto resolveu-se logo no dia seguinte.Uma conversa bem feita tem muito mais poder que uma palmatória.
Volta sempre

5:29 da tarde  
Blogger Inês said...

Eu andei na escola da Trindade, entrei em 99 e saí em 2002. Parece que a escola fechou no ano seguinte... Não soube bem o que se passou, era muito pequena... Só sei que se passou alguma coisa com um provedor....

Sabe o que se passou?
Inês.

11:12 da tarde  
Anonymous setora said...

Inês,
Não vivo no Porto mas tentei descobrir. Perguntei a algumas (poucas) pessoas mas nenhuma sabia nada.
Volte sempre

1:46 da manhã  
Blogger Unknown said...

Ola' Setora

Em que ano andou na Escola da Trindade?

4:34 da tarde  
Anonymous setora said...

Entrei em 1955, tinha 5 anos.
Também foi lá aluna?
Imagino que tenha memórias semelhantes.

9:09 da tarde  

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