O olhar de Kalaf Angelo
Da Figueira a Kitintale
De regresso a casa, na Baixa de Lisboa, é frequente optar pelo trajecto que me faz atravessar a Praça da Figueira, que em final de dia se enche com skaters. Embora não seja o local ideal para aqueles realizarem as suas manobras, esta praça - bem no coração da cidade e nas costas doutra, que é provavelmente a praça mais emblemática de Lisboa, o Rossio - representa mais do que um ponto de encontro para os skaters; é uma praça que foi conquistada à cidade! Ali, partilham ritos e ritmo, lado a lado com uma mão-cheia de mendigos, turistas, algumas prostitutas de meia dezena de euros e ainda a Tribal Urbano (loja especializada e ponto de informação sobre o skate em Portugal).
Ainda tenho presente o dia em que pedi à minha mãe que me desse um skate como presente de aniversário. O pedido foi, como é óbvio, negado, pois a minha inquietude e traquinice já me haviam rendido umas belas cicatrizes. Contudo, tal não me demoveu de seguir o meu sonho de rolar sobre quatro rodas: acompanhado pelo meu grupo de amigos, montei uma pequena linha de montagem para construir karts e trotinetas ("teió", como lhes chamávamos), um DIY a partir de rolamentos e tábuas recicladas de um qualquer móvel.
Sim, gosto dos skaters, tenho vindo a comprar pranchas assinadas por artistas como Damien Hirst, a aprender com a forma apaixonada e quase religiosa como estes se entregam a este desporto de cidade, tal qual surfistas no mar. Agrada-me, sobretudo, observar como se tem vindo a construir uma indústria à volta desta comunidade, e é com bastante interesse que tenho vindo a acompanhar, de há um ano a esta parte, o crescimento do projecto Uganda Skateboard Union. O seu skatepark em Kitintale, um subúrbio de classe operária na capital do Uganda (Kampala), é resultado da iniciativa de um grupo de miúdos, que, depois de verem na televisão um campeonato de skate, decidiram construir o seu próprio parque. Essa iniciativa não só sensibilizou a comunidade local, como atraiu atenção internacional nas entidades ligadas ao skate, que não fizeram tardar o envio de donativos essenciais para a prática do desporto naquele que é o único skatepark na costa leste de África.
Os skaters não buscam a aceitação dos homens, não reclamam zonas verdes; aceitam a rua tal como ela lhes é apresentada e deixam-se apenas deslizar... sobre aquelas quatro pequenas rodas, tentando não perder o equilíbrio, testando os seus limites. Sabem que a sociedade os coloca na margem, mas não se esforçam para contrariar isso. Não que sejam passivos, mas não são do tipo de reclamar qualquer decisão política para a melhoria da vida dos jovens nos grandes centros urbanos. Simplesmente adaptam-se a essa urbanidade claustrofóbica, sem grandes reflexões ideológicas.
Atravesso a praça e observo-os de forma discreta; sei que não gostam de se sentir alvo da curiosidade. Apresso o passo, caminhando até a minha presença deixar de ser incomodativa, para depois me voltar e fixar o olhar na poesia dos movimentos, na elasticidade dos corpos e na forma desleixada como se vestem.
Músico
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