Cidades
A cidade
tem uma belíssima luz sobre as colinas.
Tem ruas estreitas e íngremes, avenidas largas, terreiros grandes.
Tem jardins verdes e parques floridos. Um castelo ali ao cimo e palácios dispersos.
Tem varandas forjadas com ferro e sardinheiras, telhados com clarabóias, frontarias com azulejos bonitos.
Tem casas, muitas casas, algumas degradadas, muitas muitas vazias.
E alguns de nós a viver em barracas
Tem coisas boas e más. É complicada.
A cidade
tem o toque dos sinos e o canto dos pássaros, o riso das crianças e as gargalhadas novas.
Tem buzinadelas, chiar de travões, gritos de dor, estouros de choques mortais.
Tem coisas boas e más. É complicada.
A cidade
tem frutos saborosos, hortaliças viçosas à venda na rua do bairro, na loja da esquina.
Tem fontes que jorram água tratada e chafarizes simpáticos que tratam as sedes.
Mas na minha casa ainda não há canos nem torneiras.
Tem coisas boas e más. É complicada.
A cidade
tem perfumes de terra molhada e de castanha assada misturados no ar.
Tem os gases dos escapes a entranharem-se nas narinas e, na beira do rio, um cheiro a esgoto igual ao que às vezes inunda a minha sala de aula no barracão de madeira.
Tem coisas boas e más. É complicada.
A cidade
tem calor e frio raramente excessivo.
Tem brisas meigas e, às vezes, ventos bravios que despenteiam, empurram e levantam as saias.
Tem chuvas brincalhonas que gostamos de apanhar na cara, no cabelo, nas mãos a caminho da escola.
Às vezes tem aguaceiros tão fortes que tranformam a minha rua em lama e fazem sair um exército organizado de bacias e baldes para impedir a inundação lá em casa.
Tem coisas boas e más. É complicada.
A cidade está longe de nós que vivemos no subúrbio.
Graças ao Centro Nacional de Cultura e a este amável convite do senhor Presidente pudemos visitá-la mais duas vezes. De outro modo a cidade custa-nos uns quantos euros de que raramente dispomos. Assim, vamos contando, a maioria de nós ainda pelos dedos, as vezes que mergulhámos nela.
A cidade é para nós distante e estranha.
Mas a cidade e os seus arredores têm muita gente a andar e a correr, a viver e a pensar. Por isso, um dia vamos pensar tão bem que vamos resolver as coisas más e tornar simples o que parece complicado.
E não vamos mais ser estranhos à cidade.
Há uns anos atrás, uma das minhas turmas participou num programa de visitas à cidade do Centro Nacional de Cultura. Foi depois convidada para uma recepção na Presidência da República que juntaria as turmas das diversas escolas que tinham entrado naquele programa.Tínhamos trabalhado os sentidos e, com os alunos, escrevi este texto que representou a escola. Não representou, afinal, os meus alunos, que esses, tal como eu, foram proibidos pela gestão da escola de ir até Belém, de percorrer mais uma vez a cidade.
Mas não é esse triste episódio criminoso que me interessa esmiuçar agora.
Agora é tempo de eleições para a autarquia de Lisboa e chamo o texto para chamar a atenção para este assunto - a gente nova e a cidade.
É verdade que o preço dos transportes impede os jovens de se apoderarem da cidade. Os meus alunos , que vivem paredes meias com Lisboa, não conhecem a cidade. Sublinhei porque esta é uma realidade ignorada. E, naturalmente, aqueles poucos que têm a sorte de numa parte das férias acompanharem sobretudo as mães aos empregos em Lisboa distinguem-se imediatamente - essa experiência acrescenta-lhes a sabedoria. Ainda hoje no autocarro em que circulei na cidade, pela uma da tarde, viajavam oito passageiros. Nenhum deles jovem. Uma tristeza, um desperdício. Há cidades na Europa onde o transporte é gratuito para os mais novos e isso conduz a um reforço de cidadania, ao alargar das aprendizagens.
É verdade também que, quando crescem, muitos deles vêm trabalhar para Lisboa mas não podem instalar-se na cidade. Os preços proibitivos dos alojamentos obriga-os a manterem-se na casa clandestina do subúrbio, apesar de também já cara. Uma especulação conduz à outra. E ali, por um barraco discretamente construído numas traseiras, feito de tijolos de humidade e mofo, paga-se 300 ou 400 euros de aluguer. Sem recibo, claro. E com a cidade esvaziada.