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Festa acaba em tiros, portas arrombadas e troca de acusações entre GNR e moradores
Incidente banal num bairro social do Monte da Caparica origina intervenção policial com feridos de ambos os lados. GNR só reconhece os seus, mas o sangue tinge as casas arrombadas
"Fui acender uma vela e pedir a Deus para acalmar o coração dos polícias. Nunca tinha visto nada assim. Eles abusaram. Sou analfabeta, mas sei o que estou a dizer." A indignação roça a revolta, embora as palavras de Ana Freitas, 50 anos, cozinheira nascida em Cabo Verde, sejam seguras e tranquilas, quase suaves. "Eles desobedeceram de forma expressa às autoridades e o arrombamento das portas foi necessário para acabar com as agressões contra a Guarda." Na síntese do major Henrique Belo, da Guarda Nacional Republicana de Setúbal, só não há indignação, nem revolta, porque a função não lho permite. Mas há veemência e convicção.
No oceano de incompreensão que separa a cozinheira do major vogam versões inconciliáveis de uma noite de sobressalto, tal como sucede, irremediavelmente, entre as partes de qualquer conflito.
Pouco passava das 10 da noite de ontem e Ana descansava na sua casa da Rua da Boa Esperança, mesmo por baixo da Rua das Quintas - onde ainda subsistem vivendas do tempo em que Monte da Caparica era apenas uma aldeia da periferia de Almada e não um aglomerado de bairros sociais. Por malvadez, ou por desesperança, alguém chamou a este de Asilo, Bairro do Asilo, como se ali quisessem asilar, ou mesmo exilar alguém, ou os milhares de pessoas de muitas raças que lá vivem.
"Vi tudo da minha janela. Os miúdos estavam a fazer uma festa de anos em frente ao número sete e de repente eles chegaram. Começaram aos murros e pontapés e alguém atirou um vaso de uma janela. Eles responderam aos tiros e foram-se embora. Quando voltaram parecia que era um batalhão para a guerra. Taparam as ruas, vinham com aquelas luzes verdes para ver atrás das cortinas. Atiraram gases e tiros, entraram no prédio, arrombaram portas, arrastaram as pessoas para a rua, até mulheres e crianças, bateram em toda a gente." Ana conta que depois de a Guarda deixar o número sete, e temendo que a seguir fizesse o mesmo no seu prédio, acendeu uma vela e deitou-se no chão com a filha pequena. "Deixei a porta aberta para eles não partirem tudo. Não vieram cá, mas hoje não consegui ir trabalhar. Pensam que toda a gente que mora nos bairros sociais são traficantes e bandidos. Isso é abuso de poder e racismo."
Na descrição de Henrique Belo, o que se passou foi que os guardas usaram os "meios necessários e legais" para pôr cobro às agressões de que estavam a ser alvo. Um comunicado do Comando-Geral da GNR afirma que ao chegar ao local, "depois de alertada para distúrbios provocados por um grupo que participava numa festa na via pública", a patrulha "foi imediatamente injuriada e, em acto contínuo, agredida". Mais tarde, com a chegada de 32 efectivos do Pelotão de Intervenção Rápida, "alguns membros do grupo refugiaram-se em casas, continuando a arremessar objectos contra os militares". Para "evitar a escalada das agressões", justifica o comando, "foi ordenada a entrada em duas residências". Balanço oficial: 18 detidos; quatro guardas que "receberam tratamento hospitalar" e cinco viaturas da GNR danificadas, além de "várias outras" particulares.
As escadas do prédio, as portas, e os interiores dos dois apartamentos arrombados contam, porém, outras histórias. E não é preciso ouvir as mulheres chorosas, nem as raparigas indignadas e a mostrar hematomas, nem os adolescentes e jovens adultos que alimentam raivas e revoltas a pretexto de tudo e também de nada. Sete vidros das escadas estão desfeitos pelo impacto das balas (só de borracha, garante a GNR). Os degraus encardidos estão tingidos de sangue abundante. Os corredores do segundo e terceiro andares mostram mais sangue e a casa de banho do segundo tem trapos encharcados de sangue no chão e vestígios de luta. "Foi os ladrões", diz o branquíssimo João, de quatro anos, junto à jovem mãe, que pergunta quem vai pagar a porta. "Fizeram-me estar duas horas algemado e de joelhos lá no quartel", garante o cabo-verdiano Armindo Tavares, 56 anos, inquilino do terceiro andar, empregado do estaleiro da Teixeira Duarte em Coina. Tem o sobrolho aberto e um penso que diz ter sido feito pela Guarda na Trafaria. Um dos seus filhos e vários vizinhos - acusam as mães em frente à porta da rua - ficaram com a cabeça a sangrar das coronhadas. "Fizeram-lhes os curativos no quartel para abafar tudo."
O comunicado da GNR só fala em feridos da Guarda. "Não temos indicação de feridos civis. Não houve civis assistidos no quartel e ninguém nos pediu para ir ao hospital", explica o major Belo. E o sangue nos corredores e na casa de banho? "Até pode ser dos nossos homens", responde.
"Fiquei revoltada. Chorei muito. Estou triste desde ontem." Estas foram as primeiras palavras de Ana Freitas quando se dirigiu, por sua iniciativa, ao repórter do PÚBLICO. Fê-lo noutra rua, sozinha, longe do palco dos incidentes.