Referendando
Decidi propor a leitura deste texto esclarecedor, pedindo autorização para o publicar aqui à sua autora Ana Prata.
Referendo
Como nota prévia, é indispensável prevenir que este texto não se refere a uma posição sobre o aborto: não é essa a pergunta refendária e, se o fosse, duvido de que muitos fossem os cidadãos — e, porque aqui fará sentido a distinção, as cidadãs — a declarar-se entusiastas ou, sequer, defensores dele.
Falar da questão como se ela fora a de tomar posição acerca das virtudes ou deméritos do aborto releva, pois, da mais completa idiotia ou da mais despudorada desonestidade. Não tenho dúvidas de que da segunda se trata na esmagadora maioria dos casos.
Os problemas que a questão referendária coloca são vários.
Vejamos:
O primeiro, chamado da vida, coloca os defensores da vida contra os outros — defensores do assassinato, supõe-se. Ou, dito de outro modo, os defensores da criança contra os que entendem que ela é irrelevante.
É inútil pretender discutir o momento em que a vida, isto é, a pessoa tem início: bem sabemos que, a esse propósito, não existem posições científicas, mas meramente ideológicas, civilizacionais, se quisermos ser benevolentes. Tento sê-lo por agora.
Eu defendo a vida da criança. Como a vida de quem o não é. Especialmente a daqueles que, por mais vulneráveis e indefesos, mais dependem de outros. Refiro-me, além das crianças, aos velhos, aos doentes ou aos deficientes. Não defendo, porém, a vida para o sofrimento, o abandono, os maus tratos, os abusos, a indignidade, a morte violenta.
Exista a pessoa e para ela defendo, e defenderei, condições de acompanhamento afectivo, cuidados indispensáveis de sobrevivência, de higiene, de saúde física e mental, tratamentos paliativos no limite, a felicidade possível numa palavra.
Quando um casal — se o houver pois, se, à parte a Virgem Maria, nenhuma mulher concebe por si só, mas não raro o homem, concluído o acto que lhe deu origem, se alheia por completo das suas consequências — decide não querer um filho, sejam quais forem as razões da decisão, só por milagre — que é, como se sabe, por definição, raro — se encontrará em condições emocionais, psicológicas, económicas ou outras, de dar à criança que gerou o mínimo a que ela tem direito elementar.
Bastam as Joanas, as Vanessas e tantas outras, de cujo sofrimento e morte vamos sabendo, com exageradas e hipócritas surpresa e indignação. Bastam as crianças que nascem para o abandono, para a institucionalização, para um sofrimento que talvez lhes garanta qualquer felicidade eterna, da qual nada sei, mas cuja infelicidade trágica na vida não posso ignorar.
Defender a vida da criança supõe, em primeiro lugar, que exista criança. O que, por muita conversa que queira produzir-se, não é o caso de um embrião. Quem não distingue um embrião (de 14 gramas às dez semanas de gestação, segundo um dos Movimentos do Não) de uma criança precisa de tratamento oftálmológico ou, mais provavelmente, psiquiátrico.
Ainda quanto ao atentado contra a vida, não é compreensível a compatibilização da lei actual — que, aliás e coerentemente, alguns dos defensores do Não já vão questionando — com a posição defendida: nem é admissível o aborto de um embrião ou feto mal formado, nem que se comine com pena diversa o aborto e o infanticídio ou, mesmo, o homicídio premeditado.
Quanto ao prazo e às questões que pretensamente ele coloca, já aqui disse o que, como cidadã e jurista, tenho a dizer. Prazos são muitas vezes questionáveis, alguns injustos, mas sempre indispensáveis. O que, no Direito, não é novo nem habitualmente questionado. Basta, pois.
Mas, agora, além da vida, vem a vidinha: como se admite que o dinheiro dos nossos impostos possa servir para se realizarem abortos nos hospitais? Pergunto: como é possível que esse mesmo dinheiro sirva para tentar salvar de lesões definitivas ou, até, a vida de mulheres que abortam em condições de insegurança que a clandestinidade gera? Neste argumento do dinheiro, vai implícito um outro: o de que os hospitais vão ficar ainda mais ineficientes, dada a quantidade de abortos que terão de realizar, tudo em prejuízo de quem já tem de esperar muito tempo por cirurgias ou outros tratamentos. Mais uma vez, a desonestidade justificada pelo elevado princípio defendido: se o aborto implica uma intervenção simples, sem carácter de urgência, o tratamento de quem abortou com lesões consequentes nem sempre se compadece nem com a simplicidade de tratamento nem com a espera por ele. Quanto ao nosso dinheirinho para financiar "clínicas" privadas, por razões óbvias, passo adiante.
Um inovador argumento do Não tem que ver com os danos psicológicos da mulher que aborta. Admitamos. Mas, então, essa é uma relevante razão para votar pela despenalização: bem basta sofrer o aborto, na sua componente física e psíquica; porquê acrescentar-lhe riscos, custos financeiros e medo de perseguição criminal, quando não o vexame e o risco da condenação? Com isto se prende o alegado problema da opção: a mulher — horror superlativo! — pode abortar por opção. No entender dos defensores da penalização, as mulheres — que sofrem, como eles próprios dizem — optam por abortar, o que significa que, perante vários programas de manhãs ou tardes bem passadas, preferem o aborto ao cinema ou a outras actividades recreativas ou de lazer. Seria melhor regressar aos tempos em que se entendia que elas eram débeis mentais — com ou sem alma —, carecendo de quem delas tomasse conta.
A despenalização faz subir em flecha o número de abortos: e vêm estatísticas a comprová-lo. De novo e como sempre, a exploração da ignorância: sendo o aborto clandestino, é impossível elaborar estatísticas mediamente seguras sobre ele; ignorando-se os números no quadro de clandestinidade, como podem comparar-se com os verificados na legalidade?
Raro é ver ou ouvir os entusiastas do Não defender que as mulheres que abortam devem ser condenadas criminalmente. Preferem um crime sem pena.
Ora, isso não existe na lei dos Homens. Só na divina: chama-se pecado e tem castigo previsto, tanto quanto sei o inferno.
A lei penal é coisa séria e não pode, para como tal se manter, ser um breviário de regras religiosas ou morais. A lei penal visa incriminar condutas que são consideradas consensualmente muito graves numa sociedade em certo momento histórico. É evidente que menos consensualidade do que a que este problema coloca será difícil de conceber.
Há também a questão da consciência: a decisão de abortar é desse foro, diz-se, e penso que bem. Só pode, contudo, manter-se dele se for uma decisão sem efeitos penais. A liberdade de consciência só existe quando há liberdade de decisão.
Por fim, o sentido da decisão: o Sim significa liberdade e não imposição de aborto a quem quer que seja; o Não implica proibição legal e as inerentes consequências da sua violação.
E para não citar apenas opiniões femininas proponho também a leitura de um artigo do Rui Tavares publicado hoje (27/01) no jornal Público - Da vontade de não ser levado a sério.