A tentar compreender o que vai para lá da casa do vizinho.
PACOTES DE RESGATE IDEOLÓGICOS
Carta aberta às pessoas interessadas na EXIT! na passagem de ano 2010/2011
Crise, qual crise? O mundo capitalista mais uma vez se coloca esta pergunta retórica, com plena consciência de que a vitalidade renovada é o que ele gostaria de se auto-atribuir. Mas nem de longe está tão confiante como nos anos anteriores a 2008. Em vez disso, pode notar-se um certo espanto, por ter conseguido safar-se da situação mais uma vez, ao que parece. A queda da economia mundial foi demasiado profunda e a vergonha das previsões científicas foi demasiado grande para que agora pudessem ser oferecidas, com ingenuidade secundária, mais promessas dum novo "milagre económico". O optimismo oficial ecoa ainda com maior estridência na Alemanha, que parece cambalear de um "sonho de verão" [“Sommermärchen”] para outro, só interrompido pelo obrigatório "sonho de inverno" [“Wintermärchen”]. Depois do futebol, agora é a economia que está em alta. Embora sendo vencedor apenas em segundo ou terceiro lugar, imagina-se mesmo assim como campeão mundial dos corações e da gestão da crise. Mas, atrás do mais recente chauvinismo alemão da exportação, sentido com sobranceria democrática, esconde-se o medo. O ar de festa enganador não consegue disfarçar que a “recuperação”, apresentada como surpreendente sucesso do campeão europeu na modalidade de baixos salários, baseia-se numa fraude.
Apesar de ser um facto bem conhecido, mesmo assim volta a ser escamoteado que o carácter deficitário da conjuntura económica não está dominado, mas foi simplesmente transferido das bolhas financeiras para o crédito público e para os bancos emissores. Embora essa política monetária já uma vez se tenha afundado num nível muito mais profundo de crise, após o fim da prosperidade fordista, há quem gostaria de ver nos seus representantes actuais novos curandeiros. Já se fala do carácter "auto-sustentável" de uma recuperação global. Na realidade, a relativa estabilização alimenta-se apenas da inundação desenfreada de dinheiro dos bancos centrais e de programas de investimento público. O suposto sucesso alemão assenta num duplo efeito da intervenção pública de curto prazo. Primeiro, as injecções conjunturais internas evitaram uma queda ainda maior da economia interna, há muito relativamente fraca. Segundo, foram programas públicos semelhantes e às vezes ainda maiores em todo o mundo que permitiram às exportações alemãs evitar a queda a pique e voltar a subir. É apenas esta mudança brusca que cria a ilusão óptica de um boom exorbitante, quando, na verdade, nem sequer o nível pré-crise voltou a ser atingido.
Nem o fluxo de dinheiro dos bancos centrais, nem o consumo público financiado a crédito se podem prolongar arbitrariamente. As elites da Alemanha parecem esperar que a mudança no sentido de uma renovada política de poupança pública, prevista também neste país, seja ainda assim suportada macroeconomicamente pela economia de exportação, mesmo com o aprofundamento da divisão social, que já constitui opção política. Mas estão a fazer contas de merceeiro, no que respeita ao mercado mundial e aos seus contextos de mediação. O problema do deficit não pode ser externalizado numa economia globalizada, devido à interdependência recíproca. Os famosos "desequilíbrios" repercutem-se nos países com superavit logo que o respectivo financiamento, agora apoiado pelo Estado, encontra os seus limites nos países com deficit. Na UE, em particular na zona euro, esta situação já foi atingida. Os encargos dos "pecadores do deficit" são na verdade o reverso dos excedentes de exportação alemães, dos quais quase metade recai nos países vizinhos. Logo que os governos locais realizem aí os programas de poupança suicidas, que lhes foram impostos precisamente pela Alemanha, em nome da salvação do euro, uma parte significativa das exportações alemãs vai cair a pique. Já por esse motivo só pode ser descrito como equívoco grotesco o facto de neste país se festejar autocraticamente um "milagre especial", enquanto a crise da dívida está grassando por toda parte, o desemprego aumenta para níveis record e a recessão se mantém ou está regressando rapidamente.[...] continua aqui