O peso dos pesares
Peço desculpa pelo texto comprido mas há pesares que não se diluem facilmente.
Imaginemos uma situação neste meu mundo outro.
Uma turma de 27 alunos, todos com mais de doze anos, que acabam de chegar ao 5º ano. Entre eles uns três repetentes. As primeiras cenas são felinianas. Uma jovem, com ar arrapazado, entra saltando de mesa em mesa. Uns quantos continuam a briga feroz do pátio dentro da sala. Há os que vão dando conta que lhes tiraram isto ou aquilo e barafustam pelos “roubos”. Ninguém parece ouvir ninguém.
A sala atribuída era nos barracões de madeira, tinha um vibrante cheiro a esgoto mas era grande e tinha lavavo com água e grande balcão ao fundo, o que veio a permitir boa exploração.
Professores da pesada – 6 deles na casa dos cinquenta (uma no seu penúltimo ano de serviço); destes, 4 estão disponíveis para “pegar o bicho de caras”. Uma delas trabalha com estes alunos em três disciplinas e deita mãos à obra. Começa pela jovem saltadora – explica-lhe que só a ideia de que lhe pode falhar um pé e que se pode partir toda por entre as mesas e cadeiras a deixa a ela à beira de um ataque cardíaco, que já não tem idade… desculpe lá setora, nunca mais faço – e não fez. Uma caixa com 30 esferográficas, 30 lápis, 30 borrachas e uns quantos apara-lápis permitiu proibir as queixas dos roubos.
Mau cheiro, má paisagem, (con)tactos violentos, gritarias, uns dentes a menos – toca a ir pelos sentidos. E reclamar para resolver o esgoto intruso foi o primeiro passo decidido em conjunto porque todos ali mereciam condições para trabalhar. Com o esgoto mais ou menos arranjado no final da semana, a aula dos cheiros (descoberta de especiarias e aplicações) foi magnífica ainda que no final a pimenta tivesse voado para os narizes de alguns. O tacto a seguir, que permitia o jogo. Objectos variados (prego, parafuso, busca-polos, corta-unhas, luva, cálice...) metidos num saco que os alunos um a um, vendados, iam retirando e apalpavam para descobrir, dizer e depois escrever no quadro enquanto os outros registavam nos cadernos, o que eram, para que serviam, que materiais os constituíam. E outras encenações – em vez da briga séria a briga simulada e sem toque, o organizar de equipas por ordem alfabética em cima de banco estreito o que obriga a interajuda e a abraço no final, a cerimónia de oferta dos postes de cimento da escola aos mais “enérgicos” para que esmurrassem ali. Foram começando a ficar entusiasmados. A música com cantoria e escrita das letras também animou. Ficaram com uma para “hino” – trago a fisga no bolso… O ver implicou imagens e desenhos e, maravilha das maravilhas, o desenho com imagens sobrepostas que permitem a simulação do movimento. O sensaborão exemplo da professora – a menina que levanta os braços e as tranças – foi radicalmente ultrapassado pelo basquetebolista que encesta, a bola que entra na baliza, o chapéu que voa…
Encurtando por agora. A professora respondeu a chamada do Centro Nacional de Cultura e a turma (e duas outras da escola) entrou num projecto virado exactamente para os sentidos e a cidade. E lá foram no autocarro cheio de tecnologia para a cidade, usufruindo gostosamente da passeata. E foi vê-los obedecendo ao espaço indicado à beira do rio a tomar o lanche ou tranquilamente espalhados pelo jardim de São Pedro de Alcântara a desenhar um recorte do gradeamento, o castelo, os telhados com clarabóias, a árvore…
E a coisa ia andando – a professora de inglês, a mais velha, dava a instrução de trabalho para treino intensivo nas aulas de estudo acompanhado e as notas boas começaram a aparecer. Os professores pegaram naquela disciplina porque era a nova, a mais diferente. E então já brigavam pelas notas nas outras disciplinas. Muitas folhas de verbos inteirinhos preencheram em casa, orgulhosos da fila de registo no caderno da professora!
Foram afinando.
Em Maio chegou à escola convite para que aquelas turmas que tinham participado no projecto do Centro Nacional de Cultura participassem com outras de outras escolas numa recepção na Presidência da República. Reunião de interessados e imediata informação de que o 5º X não iria. Essa agora, claro que tinham de ir, estavam bem, ficariam melhor. E lá entregaram os papéis para as autorizações dos pais. E a turma elaborou o texto de representação da escola.
Um incidente menor com a abertura barulhenta de um cacifo na aula de matemática que nem chegou para perturbar a aula porque obedeceram à professora quando suspendeu a tentativa e mandou sentar, serviu para voltar a sugestão de impedimento da saída. Uma professora da sala ao lado, que estava em parceria, resolveu ver o que se passava e o aluno que lhe abriu a porta perguntou o que é que vem aqui fazer. Grande grosseria (na verdade ainda não estavam exatamente meninos de colégio suíço). Foi apresentar queixa pelo mau trato. Como a maioria do conselho de turma entendeu que os alunos deviam participar na recepção veio, em cima dos feriados de Junho, um despacho da presidente do CE a proibir. Reclamação junto da presidente e da DREL, novo conselho de turma, renovação da decisão de ida, despachos a proibir, recurso hierárquico na DREL e apelo à Secretaria de Estado que através da DREL ordena e reordena a ida e … não foram. Ficaram no passeio, bem arranjados, a ver partir os autocarros com as outras turmas, dois colegas arbitrariamente selecionados e uma professora indignada, obrigada a ir apenas com aqueles dois. Reza a história que o Presidente da República pegou no texto da turma para abrir a sua intervenção na recepção.
Numa mecânica simples, um processo disciplinar posto à professora que apresentara o recurso hierárquico levou ao imediato arquivamento do recurso. O processo disciplinar, embora se tivesse chegado à falsificação de documentos e actas, lá foi também arquivado.
Em Setembro, os dois primeiros alunos que foram à escola ver horários e turmas eram do 5ºX e correram a abraçar a professora que no ano anterior trabalhara com eles em três disciplinas e que avistaram no pátio.
Esta, embora tivesse requerido a turma, foi impedida de continuar o trabalho. As outras professoras, incomodadas com o que se passara, abandonaram a escola.
Alguns alunos também abandonaram a escola logo no primeiro período do 6º ano.
As escolas são sítios violentos e cometem-se crimes. Quem diretamente os comete e quem ajuda fica impune. São bons burocratas. Preferiam os alunos embalsamados. Mas também abrem blogues sobre ensino e educação. Haja liberdade de expressão.
PS. Não consegui tirar o p da recepção. Lá chegarei.